Crônica | As Armadilhas do Feijão Carioca

A primeira coisa que você precisa saber sobre cariocas é que eles não gostam de feijão carioca. Ironicamente, o feijão mais gostoso deste país não é tão apreciado assim na cidade que leva o mesmo nome. No Rio de Janeiro, o feijão mais adorado é aquele preto, usado principalmente na feijoada.

O que, para mim, é uma tristeza sem fim.

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Crônica | Sussurros na Noite

Acordei no meio da noite com alguém em minha casa.

Eram apenas 2h da manhã quando ouvi um ruído estranho vindo da sala. Parecia um chiado, vozes murmurando algo incompreensível, bem ao lado da porta do quarto.

Congelei na hora.

As vozes cochichavam apressadas, como se estivessem tramando algo. Olhei para meu namorado, que dormia sem muitas preocupações ao lado, e tentei acordá-lo.

— Amor — sussurrei.

Ele roncou em resposta. Cheguei bem perto de seu ouvido e tentei de novo.

— Amor.

Ele virou de costas e roncou mais alto ainda. Não adiantava. Estava sozinha. E o que era pior: precisava ir ao banheiro.

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Crônica | Tradição de Natal

24 de outubro.

— Amor, me ajuda a montar a árvore de Natal?

— Meu bem, ainda estamos em outubro!

— Pois é, só faltam dois meses para o Natal e quero aproveitar a nossa decoração ao máximo.

— Você quer dizer que AINDA faltam dois meses para o Natal, né?

— Ah, amor, o centro da cidade já está todo decorado.

— É claro, as lojas precisam vender.

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Crônicas de uma corrida (ou minha tentativa frustrada de fazer exercícios)

Acho que vou começar a correr hoje. Sim, me decidi! Hoje é um bom dia para correr.

Mas hoje é sábado, não preciso acordar tão cedo assim, posso dormir mais um pouquinho. Vou programar o despertador para me acordar daqui a uma hora.

Já se passou uma hora? Ainda tenho tanto sono, vou dormir só mais dez minutinhos.

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Crônica | Pra ser sincero

Foi numa festa, à meia-luz, que eu a vi pela primeira vez em muito tempo.  

Nossos caminhos não se cruzavam há tempos. Ela com o mesmo sorriso bobo, eu com alguns fios brancos de cabelo a mais.  

Nossa história passa por minha cabeça como um filme sem palavras. Imagens familiares que voltam a ter sentido.

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Crônica | O goleiro da Cidade de Deus

Eram oito da manhã quando cheguei à escola. Embora fosse cedo, Zezé já estava ali há algumas horas. Ele me esperava na quadra de futebol com as mãos sujas de tinta e os olhos cansados, mas orgulhosos. A quadra, que até a noite anterior estivera desbotada, brilhava agora em cores novas e com os passos ansiosos das crianças que corriam de um lado a outro, testando cada pedacinho do piso novo. Grades haviam sido instaladas nas laterais, os vestiários haviam sido reformados, os gols tinham redes e a felicidade estava estampada no rosto de todos ali presentes, principalmente no de Zezé.

Com mais de 60 anos, Zezé hoje é treinador de futebol e se dedica completamente ao CEACC – Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania, projeto realizado na Cidade de Deus com crianças e jovens da comunidade. Através da parceria com a organização ActionAid e com o CONI – Comitê Olímpico Italiano, o CEACC conseguiu reformar a quadra da escola Alphonsus Guimarães e abrir um novo mundo de possibilidades para várias crianças e suas famílias. Continuar lendo “Crônica | O goleiro da Cidade de Deus”

Crônica | A várzea

Quando chegamos, só havia mato. Literalmente. O trajeto para o campo era feito através de uma trilha que serpenteava entre os arbustos. Ao final dela, encontrávamos o famoso Campinho da Bananeira. Nunca descobrimos porque ele tinha recebido esse nome, afinal, não se avistava nenhuma bananeira por perto. É provável que ela já tivesse dado seus cachos e sido arrancada por algum desalmado.

O gramado era uma obra de arte. Como não havia dinheiro para um sistema de drenagem, a própria natureza se encarregou de resolver o problema com um declive de, pelo menos, 15 graus. Assim, a chuva logo escoava estrada abaixo, deixando a grama sequinha de novo. Grama esta que não nascia no habitat dos goleiros, como orienta os melhores manuais varzeanos. E, como simetria é coisa de quem sofre de TOC, as linhas de fundo não tinham, necessariamente, o mesmo comprimento. Continuar lendo “Crônica | A várzea”

Crônica | Imãs

A cidade dorme. A madrugada embala os sonhos – bons ou ruins – sem distinguir sexo, classe ou cor. Da janela do meu quarto, observo um céu sem estrelas e uma lua alaranjada, cheia de mistério. É claro que, vez ou outra, uma buzina solitária, uma briga de gatos ou a cantoria de um bêbado entusiasmado podem quebrar esta ilusão. Não importa, “As mentiras mais cruéis são frequentemente ditas em silêncio”.

Ao meu lado, deitada, melhor, desmaiada de cansaço está ela, Verusca, a trepadeira. Calma lá, não tire conclusões precipitadas. Eu a chamo desta forma devido à maneira como ela gosta de dormir. Sua cabeça está sobre o meu braço, as pernas trançadas imobilizando as minhas e as mãos entrelaçadas envolvendo minha barriga. Visualizaram? Quando brigamos, eu a chamo de Kuato (o líder da rebelião em “O vingador do futuro”). Ah, minha pequena leonina. Continuar lendo “Crônica | Imãs”

Crônica | Encontros na madrugada

São três da manhã. Uma pata gordinha bate em meu rosto e um choro baixinho pede atenção. Cheia de sono, abro os olhos e vejo que Chanel me vigia de perto. Ou imagino que ela está me vigiando. Ela é uma pug velhinha de nove anos e, como é característico da raça, levemente vesga.

Um de seus olhos está fixo em mim, mas o outro olha sem muita atenção o meu namorado, que dorme sem preocupações ao meu lado. Obviamente, não fora ele o escolhido para levar a nossa pequena senhora ao banheiro nesta noite. Continuar lendo “Crônica | Encontros na madrugada”