O romance de estreia de Becky Chambers é uma leitura muito gostosa e revigorante. A obra é a primeira de uma trilogia ambientada no universo Galactic Commons. A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil (The Long Way to a Small, Angry Planet, no original em inglês) foi originalmente auto-publicada em 2014 em formato digital, após o sucesso de uma tímida campanha no Kickstarter que recebeu o apoio de 53 fãs. Pouco tempo depois foi republicada no Reino Unido pela Hodder & Stoughton. O livro ainda foi um dos finalistas do Arthur C. Clarke Award de 2016. Em 2017, a Darkside Books trouxe o livro para o Brasil numa edição impecável com o capricho costumeiro da editora.
Na história, acompanhamos Rosemary Harper, uma humana de Marte que se junta à tripulação multi-espécie da Wayfarer, uma nave escavação de buracos de minhoca que conectam a comunidade galáctica. Rosemary vai atuar como guarda-livros em meio ao caos do dia-a-dia da nave.
A tripulação da Wayfarer é diversa e é difícil não se relacionar com pelo menos um deles: Sissix, a carinhosa piloto aandriskana; os técnicos humanos Kizzy Shao e Jenks; Dr. Chef, um grum que atua simultaneamente como cozinheiro e médico da tripulação; Ohan, um Sianat Par muito reservado que guiam a nave pelo hiperespaço durante as escavações; Corbin, o algaísta humano cor-de-rosa e mal humorado que foi criado numa das luas de Saturno; o Capitão Ashby Cantoso, um humano que cresceu na Frota do Êxodo; e por fim, Lovelace (Lovey para os mais íntimos), a simpática e prestativa IA da nave.
Ao longo do livro, acompanhamos esta tripulação numa longa viagem através da galáxia numa missão que vai mudar suas vidas para sempre. Durante a jornada, temos a oportunidade de conhecer cada um dos personagens enquanto eles mesmos vão se conhecendo, e enquanto suas relações vão evoluindo de formas inesperadas. A narrativa em terceira pessoa nos permite vivenciar a história do ponto de vista de cada um deles, mas é principalmente através de Rosemary que temos a chance de conhecer novos mundos, novas raças, novas formas de enxergar a diversidade da Comunidade Galáctica, e a nossa.
O universo criado por Chambers tem o melhor do gênero space opera, e faz uso das referências passando longe de obviedades. Podemos notar influências de Star Trek, Mass Effect e tantas outras obras icônicas da ficção científica. Como que para ilustrar toda a diversidade abordada na história, a Wayfarer é descrita como uma nave feita de retalhos, construída à base de improvisação.
Um elemento da história que merece destaque é o uso da temática ciberpunk de forma muito sensível e inclusiva. Diferente ciberpunk clássico, que retratava a tecnologia como uma forma de corrupção daquilo que humano, em Planeta Hostil vemos o discurso invertido: as modificações do próprio corpo não tornam a pessoa menos humanas, pelo contrário, servem ao propósito de melhor alinhar interior e exterior, harmonizando corpo e alma. Da forma como é colocado, implantes e kits de melhoramento são como uma extensão natural das tatuagens e piercings. São mais uma forma de expressão, e isso é muito bem vindo em tempos como o nosso.
Se você está atrás de uma leitura emocionante e humana, A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil pode ser o livro que você está procurando. A autora também ganha outro ponto por escrever esta história numa linguagem acessível que não exige ser letrado em ficção científica para saborear.
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