Conto | Quando a noite chega5 min de leitura

Isabela bateu a porta atrás de si, os dedos tremendo enquanto buscavam a fechadura. Suor escorria por todo o corpo e as mãos deslizaram no metal frio da chave, sem conseguir girá-la com firmeza e trancar a porta.

As pernas e os braços também começaram a tremer, como se estivessem sofrendo com pequenos espasmos ocasionados por um choque intenso. O tornozelo direito gritava de dor, incapaz de sustentar o corpo ferido por muito mais tempo. Ela se jogou no chão de terra úmida com um gemido quase inaudível, a mão ainda agarrada à maçaneta destrancada.

E, então, ele uivou.

Longo, agudo, o uivo parecia um grito desesperado e cheio de dor, como se todas as entranhas dele estivessem sendo arrancadas do corpo, pouco a pouco, expostas ao ar frio sob a lua.

O som penetrou fundo na alma da garota, que começou a chorar, não de pena, mas de medo. O coração batia acelerado, roubando o fôlego que ela ainda tinha, e toda a força que havia no seu corpo se esvaiu. A mão que mantinha a maçaneta firme caiu mole ao lado da cintura e a porta se abriu, revelando Isabela ao resto do mundo.

Agora não havia mais nada que a separasse do monstro.

Ele estava vindo.

Sangue… Sangue! Fome, morte… Vou estraçalhar você!

Isabela ouviu de longe os passos descompassados do lobo. Quatro patas no chão, uma de cada vez, se embolando apressadas, mas cada vez mais fortes. Cada vez mais perto. E Isabela o viu.

Era a primeira vez que olhava para ele depois da transformação. Ele estava ali, parado, a poucos metros, mas ainda sem conseguir enxergá-la. De seus olhos brotava sangue, feridas frescas por causa das mudanças recentes. Ele urrava – um rugido que poderia alcançar cidades a quilômetros de distância; o que não fazia diferença, pois eles estavam sozinhos e ninguém apareceria ali para salvá-la. Para salvá-los.

As patas do lobo estavam retorcidas, tentando se acostumar ao novo corpo, e ele tinha dificuldade em se manter de pé. O tronco crescera quase o triplo do tamanho e os músculos saltavam sob a pele, que agora estava coberta de pelos castanhos, gordurosos e emaranhados. As garras longas, fincadas na terra mole ao lado dos estábulos, estavam sujas de vermelho. Da boca pingava sangue que não era seu.

E logo à frente dele, caída à porta da cabine de ferramentas, estava Isabela.

Imóvel.

Sem saída.

Ela olhou para o lobo, a respiração presa na garganta. Há pouco tempo o corpo todo tremia, mas agora ela não conseguia nem mesmo piscar. Lágrimas escorriam pelo rosto e os olhos estavam vidrados no monstro, impossíveis de serem desviados.

Ele uivou de novo e Isabela finalmente piscou.

Seu coração voltou a bater e ela percebeu que precisava escapar se não quisesse morrer. Ela respirou e se concentrou. Inspirou, prendeu a respiração e levou a mão novamente à maçaneta, da forma mais silenciosa que podia, sem mexer nenhum outro músculo.

Seus dedos agarraram a maçaneta com toda a força que ainda tinham, mas antes que fizesse outro movimento, o lobo virou o rosto em sua direção. Isabela estacou e olhou para ele, o ar ainda preso nos pulmões e o rosto rígido, tentando não chorar.

Os olhos do monstro ainda estavam feridos, mas já começavam a se abrir. Ele fungou e parou de lutar contra o próprio corpo. Sangue pingou no chão quando arreganhou os dentes e começou a farejar.

Morte! Morte! Morte! Sangue! Morte a todos! Vou estraçalhar tudo!

Ele virou a cabeça para todos os lados, mas ainda não podia vê-la ou senti-la. O lobo sabia que ela estava ali, mas não conseguia encontrá-la.

A jovem olhou para baixo, para as próprias roupas imundas. Nunca imaginei que diria isso, mas ainda bem que caí na merda de cavalo.

Isabela percebeu que tinha uma pequena chance agora que o lobo estava inseguro. Talvez conseguisse passar por essa brecha enquanto ele não conseguisse sentir seu cheiro. Poderia correr até o caminhão, que estava a poucos metros, e escapar. Ele não vai me pegar. Nenhum lobo é tão rápido quanto um carro.

Ela respirou fundo mais uma vez. Sabia que não teria outra oportunidade. Segurou firme na maçaneta para se apoiar e se concentrou para levantar e correr, sem olhar para trás.

Só que Isabela se esqueceu do tornozelo machucado.

Assim que firmou o pé no chão, sentiu a dor se espalhar por todo o corpo, perfurar seus músculos, se embolar na garganta, queimar sua boca e explodir em um grito choroso.

O lobo virou a cabeça para ela, os olhos manchados de sangue – e completamente abertos. Ele podia vê-la.

Achei! Achei sangue, achei morte! Vou pegar você! Vou te estraçalhar toda! Você é minha e vou te devorar!

O monstro rosnou e uivou, depois deu um salto em direção à garota, ávido para matar. Suas longas garras buscavam a carne de Isabela, prontas para estraçalhar.

E, então, ele parou.

O focinho dele estava a centímetros do nariz dela. A baba pingava das presas, se misturando à merda na roupa da jovem. O hálito de morte batia no rosto de Isabela, mas ela só conseguia prestar atenção em uma coisa: nos olhos do monstro.

Não eram mais olhos de lobo. Não eram mais olhos de um assassino. Eram os olhos do homem que um dia fora seu irmão, e tudo que ela conseguia ver ali dentro era medo e dor.

Eu… Ele não vai te matar, irmã… Não vou deixar! Não! Foge, irmã! Foge… Fo… Me… Me ajuda, irmã… Por favor… Me ajuda.

Ela levou a mão ao rosto do monstro – ao rosto do irmão. Acariciou o pelo e enxugou uma lágrima que havia se perdido ali. Ela também chorava, mas sabia que não poderia mais fugir. Não poderia abandoná-lo ali. Ele estava sozinho.

Isabela levantou o rosto mais uma vez para dizer ao irmão que iria ficar tudo bem, mas não eram mais os olhos do irmão; eram os olhos do lobo. E ela estava perto demais.

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